Centenário de Nascimento de Maria Bonita
Ela nasceu no mesmo dia internacional da Mulher (08 de março), quem sabe se por atração dos dias que em suas alquimias insondáveis
se buscam para coroar de segredos essa mulher que aqui vamos tratar. Maria de Déa, Maria Gomes de Oliveira nasceu em uma encruzilhada, se diz de Jeremoabo, de Santa Brígida, de Santo Antônio da Glória, de Paulo Afonso, um pedaço da Terra que não se sabe onde, mas que está em toda parte, um lugar que se escondia, mas que agora todos reivindicam seu, o que ninguém queria possuir, mas que agora se libertou e abraçou a todos.
Filha da terra que mistura o estranho ao fascinante; disseram que é neta de holandesa, com remanescentes de Canudos, quem sabe? O qu
e se sabe é que é filha da terra: O Sertão, esse pedaço da Terra que se apossa da nossa alma como a força dos desertos e faz de quem se deixa seduzir por ele, grande e desértico.
Maria como a rebeca que ardia nos ouvidos e o sol que ardia na cabeça toda, desde menina não largava o desafio de atravessar o Sertão, brincandocom bonecas de pano, dançando arrasta-pé, respirando ao luar do Sertão, fugindo de assombração, sonhando com o amor. E como por aqui menina se faz logo mulher, Maria de repente se casou, sem saber que coisa é essa de amor, sem imaginar as dores e dissabores que esse dominó desconexo de homem e mulher pode gerar.
Maria, não se sabe em casa do seu marido ou na casa dos pais, ia e voltava nos desencontros de um matrimônio, desses, muito mais querido pelos seus pais do que pelo seu coração. Um dia daqueles que a vida sempre cutuca com vara curta os miolos de quem não tem que ser igual ao estabelecido, ela encontrou um cavaleiro. Cavaleiro perfumado, vestido a rigor, cheio de anéis, desses que tem estrelas enluaradas e luas que não se sabe onde nascem e nem se determina onde podem se por. Ele encomendou a ela uns bordados e ela viu nele o que não se diz, mas o que se atrai sem saber dizer. Maria sabia já a resposta de quem se olha no espelho e se pergunta: devo trocar o sapat
eiro pela aventura? (que não me condenem os Sapateiros). Passaram-se os dias e na hora da entrega das encomendas, os dois se entregaram e logo estavam desenhando estrelas de couro no céu do Sertão. O bordado os uniu, com suas linhas que atracam e desatracam, mas formam sempre esses jogos de cores, flores, folhas e espinhos, estrelas, aventura, amor, rebeldia, paixão. Elementos que furam os dedos e lembram o arder das agulhas na pele, porém sem os quais nada de realmente inovador pode acontecer. Como nos bordados, que o melhor está no avesso, o amor também se projetou: é melhor amar pelo avesso?
Ele, Lampião, já tinha se rebelado mesmo antes disso; ela, Maria de Déa, que virou Maria do Capitão, Maria de Lampião, Maria Bonita. Virou e partiu pelo inferno das palmas quentes, xique-xiques e cabeças-de-frade. Partida, que tantos juraram foi por violência. Não! Foi por vontade livre, dessas que se libertam ante todas as leis e se levantam com a violência que as inovações se determinam quando têm que acontecer. Eles nunca mais foram os mesmos, mas não só eles, também os que andavam com eles, as que passaram a andar com eles, o povo do lugar e nós que carregamos este Sertão em nós.
Quantos anos foram os que aquela jovem passou em companhia do seu cavaleiro? O suficiente para cravar em nós os traços estranhos do mito. Maria Bonita em nós, no povo do Sertão, no sol do Brasil, no chão do mundo é um mito que nos provoca, intriga, inquieta, questiona, mas que reflete sempre o fascínio que é o humano em nós. A fogueira fascinante dos mitos se alimenta sempre dos nossos ossos, verdade que as razões podem até resistir,
mas que a alma, sem dúvida, se entrega enlouquecida, afinal só as entregas desesperadas da loucura nos levam à razão do que somos.
E lá foram eles entre balas, mimos de ouro e prata, bailes perfumados e espinhos de mandacarus. O Capitão de Maria tinha seus caprichos: bordados multicoloridos, perfumes de qualidade, estrelas de couro aplicadas com equilíbrio de quem se sustenta no ar, habilidade de desaparecer e aparecer em vários lugares. Rigores que os levou a serem filmados em 1936 pelo sírio Benjamin Abrahão, como estrelas do mundo estranho, mas que antecipava o uso preciso daquela moderna tecnologia.
Estrelas que riscam o céu correm o risco de colidirem, pois a vida sempre chama para a realidade aqueles que flutuam e às vezes chama de forma cruel. Maria Bonita morreu aos 27 anos na Grota do Angico – Sergipe, onde seu Capitão marcara um encontro com seus bandos espalhados pelo Sertão, morreram com eles outros oito cangaceiros e a cangaceira Enedina. Também morreu ali Virgulino Ferreira da Silva, Capitão Lampião de patente e tudo. Perderam suas cabeças como quem ama alucinadamente. Ele na alma dos anos que viveram juntos rabiscou sempre para ela: 'o animal que carrego dentro quer sempre você e ela se foi e permaneceu com ele.
Este centenário do nascimento de Maria Bonita é oportunidade única, oportunidade que não retorna; então a gente prende, não deixa escapar, pois é a obrigação de quem participa da história colher dela seus maravilhosos significados. Quando estes significados são inovadores têm sempre força para aprisioná-los. Foi assim com tantas insurgências que gritavam por liberdade: Palmares, Canudos, Caldeirão... Porém a força do que as lançou era tamanha que as porteiras foram arrebentadas e suas ânsias chegam até hoje com tanta vitalidade. Assim também é o Cangaço, assim também Maria Bonita. Retomá-la no ano do centenário do seu nascimento é uma imposição para quem vive esses dias, para quem vive essa história, para quem carrega esse Sertão.
A força do Cangaço é tão forte, que degola: marginalidade, perseguições jamais conseguiram deter, ele continua a correr solto como o vento que leva poeira entre os espinhos do mandacaru e o arder do asfalto das cidades grandes e pequenas. Recuperar Maria Bonita não é só uma obra de museu, ainda que esta seja uma atividade nobre, mas se trata de recuperar as nossas razões de ser, de ter uma pátria, com seu cheiro, seu sangue derramado e sua/nossa identidade para desvelarmos.
CELSO ANUNCIAÇÃO
1. Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço
Frederico Pernambucano de Mello
Escrituras Editora, São Paulo, 2010
2. Viagem ao Sertão Brasileiro
Vernaide Wanderley
Eugenia Menezes
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de PE – FUNDARPE
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE - Recife – 1997.
3. A Trajetória Guerreira de Maria Bonita
A Rainha do Cangaço
João de Souza Lima
Editora Fonte Viva – Paulo Afonso – 2005.
4. Fernando Pessoa – Obra Poética
Organização: Maria Aliete Galhoz
Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro - 1986
5. Procelária
Poema de Sophia de Mello Breyner.
Maria Bonita em nós
COMUNICAÇÃO E ARTE
PAULO AFONSO - BAHIA
(75) 9158-8634